segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Contrair e expandir. Indo e voltando, em sucessões de semiciclos, para cima e para baixo, a vida gera e dá à luz a tudo o que existe. O sangue escorre pelas pernas, as ondas vêm e vão no mar, no pensamento, nas contrações do útero. Todos os pulsos de vida e de morte, em idas e vindas, ritmadamente, dão o compasso de todos os quases que nos regem. Não é a morte que revela a importância da vida, mas a experiência do quase. As semi-experiências, as semi-entregas fazem girar o mundo. Os quases são as engrenagens de tudo o que existe. Nunca vivemos lá: no ponto de verdade absoluta. Se é na quase-morte que penso e valorizo a vida, é também vivendo minha semi-vida que morro todos os dias.
Porém, às vezes, se manifesta algo de enlouquecedor e absurdo que torna tudo insuportável e me insinua e anuncia com claridade que bem há um além. Um além para todos esses quases: os autênticos e fatais inteiros. Os fatos consumados. Exausta e castrada em meu potencial e grandeza, penso que minha expansão verdadeira é a queda e entrega no obscuro caos dessas verdades absolutas. 
Há uma claustrofobia em existir que de repente não me deixa caber em nada. Não caibo nas roupas, nas vestes sociais, nos grupos. Expando assustadoramente e sufoco, vou arrancando peça por peça, saio correndo do meio das pessoas conhecidas e me entrego com verdade e sem meios-termos na multidão de faces desconhecidas que me dão ansiedade verdadeira. Não suportando as normas, as cortesias, as convivências, a polidez obrigatória e todas as coisas não-ditas que ficam suspensas no ar, saio correndo e procuro o que é declaradamente assustador e não apenas assustador nas entrelinhas. Vou de encontro ao escuro, à multidão, ao frio, ao medo... e assim me alivio, em uma catarse de coisas que são duras e me espancam e me doem mas que me dão um sentimento de honestidade e de inteireza. Vou de encontro ao frio e ao medo, tiro um cachecol, um casaco, me coloco em meio às pessoas e tremo dos pés à cabeça, de modo que não posso identificar se de frio ou de nervoso: é a vida, verdadeira, à flor da pele. Ali, sei que estou viva. Não semi-vivendo, mas vivendo uma honestidade sem máscaras, sem educação, sem controle, sem segurança. Sentindo o que há para sentir sem filtros. Aos poucos, quanto mais me solto para sentir, menos meu corpo me pertence - ele lida consigo mesmo, não precisa das minhas rédeas. Treme inteiro e não posso controlar, apenas assisto e espero. Longe de todas as seguranças sinto que vou vomitar, ter um piripaque, enlouquecer. E, ao mesmo tempo é uma mentira: sou uma caricatura de mim, não sei o que é real ou simulação.
Do outro lado, ao contrário do que é assustadoramente vivo, vejo a morte como uma espécie de verdade também para além de todos os quases. O pulso de morte e destruição, também tão honesto, grandioso, poderoso, me seduz à janela e catarata abaixo, me enche os olhos de lágrimas e não por autocomiseração ou por qualquer indício de depressão, mas apenas prazer. Prazer pelos fatos consumados. O absurdo e loucura de tudo aquilo que não é de modo algum, um quase, mas um sim. Uma verdade - mesmo que destrutiva, fatal. 
Quando exposta e vulnerável, sinto a totalidade de cada pensamento e sensação. E penso comigo: não quero ser um corpo, mas uma força. Deixo meu corpo corroer de frio, de nervoso, de medo, de seja lá que for. Me preparo para a loucura e me enxergo nesses patamares de subversão social - me chamarão de louca e aceito. Aceito o sacrifício da entrega ao que é completo. Sorrio pensando na liberdade da loucura e me imagino nua, falando sozinha mistérios indecifráveis - o dom dos que se entregaram. Expando, expando, expando. Cada vez mais força e espírito e emoção e natureza, todas as prisões da existência abandonadas pois nem pessoa sou mais. Olho o céu preto, pretíssimo acima de mim e não preciso mais nem piscar, sei que cairei de joelhos. Porém, chegando à beira de qualquer coisa que se aproxime de uma completude, em um único golpe, volto ao que é corpóreo. Meu transe interrompido por uma grosseria falada ali ao lado, um rosto conhecido que passa e me traz de volta ao chão. Mais um quase. Minha semi-transcendência, interrompida. O tumulto da rua, das pessoas, interrompem o meu transe no ponto de ônibus. O barulho me atinge e me lembra, a tempo, que sou humana em brutalidade e instinto. De surpresa, me reajusto rapidamente ao corpo. Contraio. Murcho. Volto ao tamanho normal. Em uma existência semicíclica, senoidal, não se pode subir ou descer eternamente. A única certeza é que um outro semiciclo vem logo em seguida, em sentido contrário. O único destino certo é uma imensidão de quases, interrompidos pela natureza apaziguadora que nos orienta para o equilíbrio. Volto a mim. O céu continua preto lá em cima. Pés no chão. Ponto de ônibus. Ao meu lado, um garoto diz para uma garota: "sua filha da puta". Meu vizinho passa na minha frente. Meu ônibus chega. E aí, lembro que ainda sou gente - dessa vez, por pouco.