"Queria estar sentado no canto de uma sala cheia de fumaça", ele disse, há dois anos e dois meses, ouvindo aquela da Alice Coltrane. E uma despreocupação dava o ritmo das ideias trocadas: deslocamento, dissociação, andarilhagem. Com o passar dos dias, os braços e as bocas, todos sedentos. E eu cantarolava aquela musiquinha que acabara de conhecer, easy to be around. Fazia sentido. Não tinha medo nem plano e assim se sucediam os afetos - acontecidos sem migalha.
segunda-feira, 21 de setembro de 2020
Como gata,
me mantenho hermética
enquanto lambo minhas feridas
abertas de briga
A língua,
potência curativa,
inteira devotada à minha carne
sofrida
Deitada aos teus pés
inerte de tudo
- o tempo,
a história,
o pensar,
o sentir,
o todo -
me reafirmo gata
Roçando a cauda em teus tornozelos
Desconfiada
não sinto:
toco
Teus pés fatigados
Onde me estiro por simpatia
Enquanto anos e anos
e anos e anos
visitam teus olhos
Fechados.
Não te conheço,
a não ser pelas beiradas,
bordas,
orlas,
extremos.
Beijo os pequeninos ossos
e teu couro cansado
a vida inteira apertados
nas vestes e calçados
de existir
Enquanto tu sabes -
sentes, pensas, decretas -
para si
e para o mundo
que és merecedor
de tudo, de tanto!
Inclusive de
ter os pés beijados:
também pelo poder,
também pela obscenidade,
também pelo símbolo e pela graça,
Mas antes de tudo,
e um pouco que secretamente,
porque precisa ser tocado
Nos calcanhares assim como nas dores,
Acordado da apatia
com calor de língua,
arrepio na espinha
Mares quentes
Pele que descasca
Queimada
Olho para ti
Com olho vidrado
de gata
E te vejo inteiro verão
Todo flor e fruta
Solar
Fazendo arder inteira
Minha Natureza noturna
Esquiva e assustada
Diante de ti
Magnético monstro
Mimoso
Sou simples felina
Que se estira, estica, espicha
Aconchega
Encara
E fareja
Alguma verdade instintiva
No teu semblante
Silencioso, esvaziado
Distante, perdido
Enquanto sou toda
Corpo e faro
Sedenta por sentido
Movida à percepção
Te escuto anunciar
"Quero ser rei!"
e vigio tua disposição
de menino
Enquanto cumpro meu caminho
Selvático,
Caótico,
Sina de bicho
E se me perguntas,
eu digo:
"sim,
te vejo rei!"
Homem-monstro, sorrindo
Com a boca cheia de dentes
De ouro
Os braços abertos apontando
Orgulhoso
Para a imensidão do teu legado
Um horizonte inteiro,
Um palácio,
Uma selva,
Um santuário
felino.
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