segunda-feira, 25 de junho de 2018

Quarta-feira. Sinto a sede dos líquidos depressores. Resisto. Olho pela janela, arrepio com o vento. Retiro uma pedrinha do vasinho de flor, atiro lá embaixo. Preciso de mais vento, então saio da janela, abro a porta e vou até a sacada. O escuro está certo, faz bem, é isto mesmo. Conto dez, doze, vinte e três estrelinhas, canso. O ar é sempre úmido, não passo pelo prazer de respirar o gelado sem que a água escorra pelas narinas. Seco com a manga do casaco - o que minha amiga emprestou e não devolvi. Fecho os olhos e de novo e de novo e de novo e de novo e de novo me percebo no escuro no frio no alto no silêncio e reconheço o padrão. É um vício. Se repete sempre. Há algo no escuro no frio no alto no silêncio que me coloca no transe e, devagar, se arrasta para dentro de mim, descendo pela minha garganta. Esqueço de piscar. Percebo meu corpo tremer. A totalidade de mim, da vida e do mundo me atravessa - passado, presente e futuro se confundem, viram coisa una que me perpassa. Perco meu corpo, não me pertence, sou outra coisa que apenas este corpo simples, tão simples que não comporta o transe. E é para sair de mim - de meu corpo simples, de minha existência corpórea limitada, de minha composição básica e de meus pensamentos e sentimentos elementares, humanos demais - que recorro ao escuro ao frio ao alto e ao silêncio. É por isso que abro janelas, que encho pela terceira vez o meu copo, que dou repetidas voltas na quadra às quatro da madrugada, que tiro cada um dos casacos para que meu corpo seja beijado pelos 3º C na sacada. Porque preciso transcender. 

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Zé Grilo era servente de pedreiro. Morava com a mãe, que morreu há três ou quatro anos. Nasceu prematuro e seguiu miúdo durante todos os seus 36 anos de vida. Sua mãe, enquanto viva, cuidou dele até quando pôde. Servia comida, lavava a roupa, arrumava o quartinho, fazia café com leite de manhã e separava a roupa para ele vestir. Zé sustentava a casa com seu salário de servente e a mãe cuidava da lida, até que ela foi ficando velha e doente. Zé então passou a dar comida, lavar as roupas, servir o café com leite para sua mãezinha que não parava de ir embora. Até que um dia se foi.
Zé seguiu a vida, muito sozinho. Vendeu as galinhas, não tinha tempo de cuidar. Era um homem quieto, passava despercebido na vizinhança, no trabalho e também em sua própria casa. Trabalhava bem, fazia todos os esforços, embora fosse tão franzino. Pegava o ônibus das seis e meia da manhã, usando o boné revestido de crochê que sua mãe lhe fizera. As unhas bem curtas, a barba de mais ou menos um mês. Zé olhava o céu azul pela janela do ônibus, o novo trânsito da cidade, os outdoors. Não prestava muita atenção às pessoas e às conversas. Gostava dos prédios e carros. Estava com 36, lembrava todos os dias. E a rotina eterna e interminável de ir pra obra e voltar pra casa. Nunca tinha pensado muito, mas no ônibus, de repente, percebera que era sozinho. Sujo, calejado, mirrado. Pouco homem. Sozinho. E estava ficando velho.
Os homens no trabalho, debochados e depravados, brincavam e intimavam Zé Grilo a se interessar por mulher, por qualquer uma que passasse. Conhecia bem todas as piadas chulas dos colegas e até sabia esboçar sorrisos verdadeiros de graça; mas a urgência sexual não lhe afligia. Não se sentia tão macho. Os homens da obra costumam se eriçar com qualquer mulher, fazendo dezenas de pequenos alvoroços diários com a passagem de cada uma delas na calçada. Mas Zé Grilo frequentemente deixava de ouvir, fugia mentalmente, às vezes se sentia envergonhado. Porque havia a babá das crianças da casa 33. A zombaria dos colegas com a moça pequenina que passava de mãos dadas com as duas crianças ruivas e o rabo-de-cavalo balançando, o perturbava, o revoltava. Baixava os olhos, não queria fazer parte, nem ser confundido com um deles. Não por ela. Ela, que inspirava nele a fantasia de tê-la como mãe de seus filhos. Carinhosa e doce, de cabelos limpos, que ria bonitas gargalhadas infantis, que usava tênis brancos. Imaginava o cheiro do seu pescoço. Perto da obra, ela atravessava a rua, evitava a deseducação dos homens, entrava na padaria com as crianças. Saíam depois com um saco de pão e os pirulitos nas mãos, todos os dias. Talvez tivesse uns 16. Mas Zé Grilo não costumava se estender muito nas fantasias. Sacudia a cabeça, esvaziava a mente e voltava a trabalhar. Com o fim do expediente, pegava o ônibus das sete, sempre lotado. De pé, espremido, lembrava de novo, por acaso, que estava com 36. Sacudia a cabeça mais uma vez. 



[2012]
Preciso estar deitada
debaixo de um céu muito negro
para que meu corpo vire instrumento
de uma linguagem que eu sequer entendo,
mas através da qual eu preciso me transformar.

De olhos fechados, entregue,
Deslizo a caneta no papel.
Não olho pra cima, tenho medo.
Espero. Respiro.
Não demora muito e logo vem a ânsia:
Deitada no chão, quero cuspir fora
A minha natureza humana.
E, como que telepaticamente, um mistério se revela:
não sou pessoa, sou uma força.

Sem destino, sem tempo, sem história
quero que tudo aqui se dissolva,
E que, no escuro, dentre os mosquitos,
Sapos e grilos,
Eu mesma me transforme
Apenas em instinto.

Debaixo da luz da lua, meu corpo não é mais meu:
sou o nada,
sou o todo.

Não sobram planos, vontades,
Não sobra futuro nem passado, 
Não sobra sequer pessoa.

Quero apenas ser o pó,
Não ter nenhum domínio,
Ser regida pelo desconhecido
O mecanismo secreto
Dos luares e ventos,
Das marés e sonhos

Flutuar por milênios,
Em águas calmas e silenciosas,
Memória ancestral dos tempos
Em que, antes de qualquer coisa,
Não havia corpo,
Não havia forma,
Não havia nome,
Não havia coisa alguma,
Tudo era

Apenas

Potência.



terça-feira, 5 de junho de 2018

Bem acima das sobrancelhas nasce uma canseira. Dá pra sentir ela se instalando, vindo de algum recôncavo profundo do cérebro, algum canto obscuro. Não é tristeza - já tive dela o suficiente pra saber com clareza que dessa vez não é. Nessa madrugada, é só uma energia parada, a apatia da espera. Talvez nada nunca aconteça.