sexta-feira, 17 de junho de 2022

Carmen Regina

Tenho algumas memórias dessa prima de minha mãe. As mais longíquas são de quando eu ainda era filha única, entre 3 e 4 anos. Morávamos naquele apartamento que ainda não tinha nenhum aumento, mas comportava bem eu, minha mãe e meu pai. As coisas ainda não eram velhas, muito menos o casamento deles e a minha existência. Tudo parecia, pensando agora, novo e promissor. Se não me engano, tínhamos uma mesa de centro na pequenina sala, entre o sofá e o rack com a televisão, onde eu desenhava. Minha mãe tinha alguns objetos interessantes: alguns cristais, uma pirâmide verde, um recipiente bonito que parecia de cristal, uns quadrinhos que ilustravam a galáxia, outro que era uma versão de A Criação de Adão, não me lembro bem agora - mais tarde descobri que quase toda casa tinha quadrinhos naquele estilo. Minha mãe tinha essa prima. Lembro que às vezes nos visitava. Ela tinha uma presença mística. Uma vez foi com o namorado, ele fez o mapa astral da minha mãe, um calhamaço de papel que passou anos nas minhas mãos, como mais um desses objetos curiosos de minha casa. Não lembro nada das visitas dessa época, só que foi nessa época e em uma dessas que foi entregue o mapa astral. Escrito à caneta, muitas folhas presas com colchetes. 

Outra lembrança é de estar no centro espírita, em uma sala onde era a biblioteca, ao lado de onde acontecia a sessão. Era o centro kardecista onde cresci. Carmen, a prima da minha mãe, também frequentava. Lembro de, da sala ao lado, ouvir a entidade - Iara, que incorporava a dirigente da casa, dona Celci - confrontar Carmen por conta das unhas: compridas e pintadas de roxo, "parecem garras", que ela deveria cortar fora, pois simbolizavam todas as unhas que ela inescrupulosamente havia arrancado de pessoas em uma vida anterior. Por algum motivo, existia uma hostilidade da entidade - ou simplesmente de dona Celci - para com Carmen.

A lembrança mais vívida, e da qual gosto muito, é de Carmen sentada na cozinha do apartamento enquanto minha mãe - mãe de dois - cozinhava o almoço para nós e para a visita. Percebo que minha mãe talvez nunca tenha tido a oportunidade de ocupar aquele feminino: estar sentada à mesa, comendo uma maça enquanto espera alguém preparar o almoço, fumando um cigarrinho, divagando. E aquele feminino na minha casa - um feminino de cabelo curto, unhas pintadas, fumante, divagante - tinha um cheiro especial. Me apresentava algo novo. Exercia, sem que eu percebesse à época, certo magnetismo.  

Uma das últimas lembranças é de visitar Carmen numa casinha no Barro Duro. Fomos de ônibus, eu, meus pais e meu irmão. A casa tinha um pátio com grama onde montamos uma piscina de mil litros. E a casa também tinha objetos interessantes. Um deles era o jardim chinês, aquele enfeite com uma areia e umas pazinhas pra ficar mexendo, acredito que para relaxar. Nunca tinha visto um, me prendeu. No pátio, tinha um construção, um quartinho, onde ela guardava quinquilharias compradas no Paraguay - talvez para revender, mas que tinha desistido, e que ficaram lá paradas. Enfeites de Natal, material escolar, brinquedos, porcarias em geral. Eu, que nasci com uma apurada natureza de rata mexeriquenta, me diverti entre as caixas.

O ponto é que: penso muito em Carmen, que faleceu doente do corpo e da mente, deformada de si. Sinto falta daquela figura que me apresentou alguma coisa que não entendo bem. Quando penso em bruxaria, penso nela. E na presença misteriosa que me causava tanta curiosidade. 

Cresci em ambientes místicos, de luzes coloridas, passes, reforço com guaraná na cabeça no final do ano no centro espírita, sons da natureza, deitada no chão embaixo da maca enquanto minha mãe aplicava massagem relaxante em alguém. Carmen fazia parte desse universo de encantamentos e de mistérios. 

Hoje, aos vinte e oito anos, talvez perceba que Carmen tenha sido também um desses femininos agredidos e atacados, que sofreu abusos e traumas, que foi incompreendida pela família, que foi viúva na juventude. Professora, como eu. 

Carmen, de quem lembro quando acendo um incenso ou fumo um cigarro ou percebo que minha cor favorita é roxo.

Carmen, teu nome para caso eu tenha uma filha.

Onde quer que estejas, receba meu carinho e saudades.




domingo, 15 de agosto de 2021

Entranhas

15/08/2021.

Uma sombra eventualmente me abate. E meu corpo, que é sedento de luminosidade, se ressente. A nuvem pesada como que de chuva paira e me sinto abafada, úmida, febril e vou me despindo das peças de roupa, sufocada. Me encolho onde estiver – num banco, sofá, cama, poltrona, janela de ônibus -, e se estou trabalhando, apenas aceito o abatimento e o encaro, acostumada com todos os abatimento outros já conhecidos, ainda mais eu, que sou mulher.

A nutricionista concordou com minha teoria: é culpa do intestino. Posso até querer fugir, me matar, sentir falta disso, daquilo, daquele - desatinada dos sentimentos - e me sentir sufocadíssima no planeta. Posso enlouquecer e nutrir um desejo incontrolável de saber notícias tuas e te olhar sem que tu me veja: bonito, balançando os braços como odeio, só saber se está saudável e bem, feito uma mosca ou um espírito invisível. E quero morrer e morrer e morrer porque não me cabe mais saber coisa alguma - se está bem ou mal, vivo ou morto, tanto faz!

Ainda por culpa do intestino, sinto o sufoco ao entrar em um supermercado, um shopping, um posto de gasolina. Vontade de me destruir. Intestino, o maldito! E é tão bom poder enfim – ufa! – entender que o estado profundo de depressão, morte, fuga é transitório - esvazia, desincha. A desconexão profunda com o presente, com os espaços, com os lugares, com o tempo em que vivo, com a força maior que nos rege - não deus, mas o capitalismo -, com os rótulos dos produtos todos da mesma corporação, das sucatas de carro e caminhão atirados por todos os lados, prédios abandonados, pessoas sem máscara, cílios postiços: tudo é o intestino, culpado pela minha percepção caótica do mundo. O intestino me coloca em estado de intolerância, de dissociação, impaciência, ojeriza, morte. O intestino me faz chorar. O intestino quer me fazer fugir. O intestino me deixa febril de enjoo existencial. O intestino me faz incomodada na carne. Se os ovários, por outro lado, me colocam em alerta, lucidez, pura ira válida e instinto; o intestino me lambuza a pele e a consciência com uma umidade como a que vem da terra, exaustiva, pesada, me fazendo claustrofóbica de tudo e de mim. Destemperada, um calor insuportável que queima por dentro, me arrasto feito lesma contra tudo o que de repente salta à consciência e me hostiliza.

Quando em casa, sozinha, de porta aberta, liberto meus restos, enfim se vão os resquícios e miasmas de meus sentimentos e mágoas e dores e amores e paranoias. Me esvazio e descem todos pela privada. No intestino, acumulo todos eles. Sempre se renovando como parte de minha própria flora intestinal. Então, livre, sorrio grande e assino mil decretos comigo mesma: Preciso correr! Correr 5 km! Correr todos os dias! Comer fibras! Fazer terapia! Viajar sozinha! Escrever um livro! Não dedicar amor ao outro mais do que sou capaz de dedicar a mim! Não ter medo da traição, do abandono, da mágoa! Ser o Sol de mim, não pretender ser o Sol do outro! Resgatar meus amigos, um a um! Ser livre! Transar muito, tenho só 28 anos! Talvez não ter filhos, tudo bem! Enterrar os mortos e amá-los enterrados! Brigar e amar sem temor! Me chatear soltando palavras, e não me engasgando com elas! Correr então não mais 5, mas 10 km!

E, assim, renovo brevemente as energias. De modo geral, retomo um bom, confortável, esperançoso ponto de equilíbrio, recalibrada emocionalmente, de tripas vazias.


segunda-feira, 21 de junho de 2021

Desértica

15/06/2021 - 00h12

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Será que meu espírito me deixou? Sinto uma desconexão com o altíssimo, o lugar de inspiração. Surda para ouvir o sopro. A alma descolada do corpo, deformada, flutuando acima da cabeça, presa por farrapos ao meu cérebro. As memórias não são mais de fácil acesso: será que eu também vou me esquecer da infância? Dos abraços e beijos dos meus amores? Das risadas das pessoas? De emoções fortes? Coleções e coleções engavetadas, senhas de acesso perdidas, portas emperradas de mim. A substância de todas as escrituras, perdida. Caneta sem tinta. 

Como se perde memória e acervo de si, também se perde linguagem. Falei para meu amigo que penso em mim como vivendo uma grande aridez e secura, mas carregada de imenso respeito e amor pelo meu deserto, que é um tempo de espera, certa de que logo ali há vida, depois de atravessá-lo. Morta-viva, aguardo o verdejar de tudo em mim. Mas o amigo me corrige: "Pois eu me sinto vivo como nunca - e acho que você está bem viva também. Acho que pra se estar vivo sozinho, sem apoio, com dois pés na terra... Precisa-se estar muito vivo. Mais do que quando se tem 15 anos". 

E assim, hoje, me soube viva como nunca neste corpo cansado, nesta mente esquecida, cheia de palavras murchas sem nada a dizer. Assim mesmo, experiência válida. Estar viva e obter a consciência da preciosidade do hoje também como narrativa me caíram como grandiosas surpresas.

E, assim, eu que trabalho e espero por algo, eu que lavo meias em um balde, eu que tenho 27 anos e sou esquecida e já tenho rugas na testa e que amo e odeio em silêncio e que oculto percepções e que me faço de sonsa e que ensino crianças e que tenho dentes amarelos e que faço fofoca: sou eu narrativa válida.

E, também assim, me encerro como queria, mas diferente do que esperava: não me encerro para as palavras como imaginei que seria, mas encerro a minha expectativa pelo retorno de uma linguagem que na verdade já é velha e carcomida, não veste mais tão bem.

Nessa noite, estou enfim despida de mim como há anos não ficava. Havia desaprendido a necessidade de, de tempos em tempos, enterrar-se a si para parir qualquer coisa outra. 

Acreditei-me até então estar no deserto, como ouvi Adélia Prado descrevendo dia desses. Talvez estivesse mesmo, por ignorância. Hoje à noite, porém, lavo a boca seca neste oásis fresco de mim. Toda nua e refrescada quero dizer e registrar que também escreve-se sobre o deserto.

E que ele é lindo amarelo e quente. Queima os pés e os olhos. A pele endurece. O deserto ensina resignação. O deserto exige humildade e grande sacrifício. O deserto é uma missão. É preciso esquecer-se da sede, do cansaço, da dor, da secura inteira e acostumar-se ao infinito de areia. Seguir em frente e aceitar: "minha vida inteira será de caminhada em um deserto amarelo sem fim!". E é esquecendo-se do desejo de estar em verdejantes planícies férteis que, talvez, aprende-se a amar o deserto. A fazer parte do deserto. A reconhecer-se desértica-amarela. E enfim, cessada a relutância, aprender a linguagem dessa geografia.

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segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Com tal zelo, e sempre, e tanto

"Queria estar sentado no canto de uma sala cheia de fumaça", ele disse, há dois anos e dois meses, ouvindo aquela da Alice Coltrane. E uma despreocupação dava o ritmo das ideias trocadas: deslocamento, dissociação, andarilhagem. Com o passar dos dias, os braços e as bocas, todos sedentos. E eu cantarolava aquela musiquinha que acabara de conhecer, easy to be around. Fazia sentido. Não tinha medo nem plano e assim se sucediam os afetos - acontecidos sem migalha.










Como gata,
me mantenho hermética
enquanto lambo minhas feridas
abertas de briga

A língua,
potência curativa,
inteira devotada à minha carne
sofrida

Deitada aos teus pés
inerte de tudo
- o tempo,
a história,
o pensar,
o sentir,
o todo  - 
me reafirmo gata

Roçando a cauda em teus tornozelos
Desconfiada
não sinto:
toco

Teus pés fatigados
Onde me estiro por simpatia
Enquanto anos e anos 
e anos e anos
visitam teus olhos
Fechados.

Não te conheço,
a não ser pelas beiradas,
bordas,
orlas,
extremos.

Beijo os pequeninos ossos
e teu couro cansado
a vida inteira apertados
nas vestes e calçados 
de existir

Enquanto tu sabes -
sentes, pensas, decretas - 
para si 
e para o mundo
que és merecedor
de tudo, de tanto!

Inclusive de
ter os pés beijados: 
também pelo poder,
também pela obscenidade,
também pelo símbolo e pela graça,

Mas antes de tudo,
e um pouco que secretamente,
porque precisa ser tocado

Nos calcanhares assim como nas dores,
Acordado da apatia
com calor de língua,
arrepio na espinha

Mares quentes
Pele que descasca
Queimada
Olho para ti 
Com olho vidrado
de gata

E te vejo inteiro verão
Todo flor e fruta
Solar
Fazendo arder inteira 
Minha Natureza noturna

Esquiva e assustada
Diante de ti 
Magnético monstro
Mimoso
Sou simples felina

Que se estira, estica, espicha
Aconchega 
Encara
E fareja

Alguma verdade instintiva
No teu semblante
Silencioso, esvaziado
Distante, perdido

Enquanto sou toda
Corpo e faro
Sedenta por sentido
Movida à percepção 

Te escuto anunciar
"Quero ser rei!"
e vigio tua disposição
de menino

Enquanto cumpro meu caminho
Selvático,
Caótico,
Sina de bicho

E se me perguntas,
eu digo:
"sim, 
te vejo rei!"

Homem-monstro, sorrindo 
Com a boca cheia de dentes
De ouro

Os braços abertos apontando
Orgulhoso
Para a imensidão do teu legado

Um horizonte inteiro,
Um palácio,
Uma selva,
Um santuário

felino.



segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Sentado numa sala cheia de fumaça

Folhas secas de velhas plantas no chão do teu quarto, hematomas na minha pele: não sei nem farei questão de saber quem você é. Aposto apenas na hipótese de péssima pessoa. Avisei logo a mim mesma e vi a luz do alerta piscando: "péssima pessoa!". Um pouco porque você não lava a louça, mas acima de tudo porque me lambe, porque me deixa roxa, porque me morde demais as coxas. A estranheza de te desconhecer e a liberdade de te ter como meu desconhecido me libera também da obrigação de te ler - então não te leio. Não há de se ler nada porque é assim que as coisas são. Não posso contemplar com olhos enfeitiçados coisa alguma. Há o céu, os prédios, a cidade inteira para ver do terraço, a tua sacada onde eu descanso e te espero desocupar o banheiro, perco um instante perseguindo os passarinhos noturnos, os carros lá embaixo, o trânsito de nuvens. Experimento não sentir nada. Não tenho medo. Não parece sonho. Estou aqui. Dura, compenso com honestas sujeiras e obscenidades toda uma vida adoecida por obsessivas fantasias. Você me oferece o colo onde me deito e onde apanho e de onde observo esse rosto bonito que mal beijo e que eu sei que saberia amar. Por ser pessoa crescida é que estou só, por isso não tenho medo, por isso não sinto amor - passo pelo mundo isenta de ingenuidade e vazia, obstinada a me deixar cortar. Não serei mais eu, serei esta outra. Passando sem drama e em silêncio, passando sem festa, passando sem euforia nem lágrima no olho: passando pelo mundo eu me deito com uma péssima pessoa e tento matar em mim a doçura. Até sei bem que a cor preta do teu olho é a minha favorita e que farejei a semelhança na composição da estranheza. Sei também que te escolhi na multidão com bons motivos: contigo eu ia gozar ouvindo jazz. Reflection on creation and space. Bruto, de dentes cerrados, olha furioso nos meus olhos enquanto expulsa a pureza do meu corpo, apertando meu pescoço. Assimilo e mereço cada um dos tapas na cara, a abolição definitiva da ingenuidade. Sábia e serena sei do meu destino: expulsa como puta barata junto meu casaco e saio com a carne que lateja tuas mordidas. Escoo todo o meu passado enquanto desço as escadas. Não me resta nada. Não sou nada. Aceito e te deixo não ser também.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Quarta-feira. Sinto a sede dos líquidos depressores. Resisto. Olho pela janela, arrepio com o vento. Retiro uma pedrinha do vasinho de flor, atiro lá embaixo. Preciso de mais vento, então saio da janela, abro a porta e vou até a sacada. O escuro está certo, faz bem, é isto mesmo. Conto dez, doze, vinte e três estrelinhas, canso. O ar é sempre úmido, não passo pelo prazer de respirar o gelado sem que a água escorra pelas narinas. Seco com a manga do casaco - o que minha amiga emprestou e não devolvi. Fecho os olhos e de novo e de novo e de novo e de novo e de novo me percebo no escuro no frio no alto no silêncio e reconheço o padrão. É um vício. Se repete sempre. Há algo no escuro no frio no alto no silêncio que me coloca no transe e, devagar, se arrasta para dentro de mim, descendo pela minha garganta. Esqueço de piscar. Percebo meu corpo tremer. A totalidade de mim, da vida e do mundo me atravessa - passado, presente e futuro se confundem, viram coisa una que me perpassa. Perco meu corpo, não me pertence, sou outra coisa que apenas este corpo simples, tão simples que não comporta o transe. E é para sair de mim - de meu corpo simples, de minha existência corpórea limitada, de minha composição básica e de meus pensamentos e sentimentos elementares, humanos demais - que recorro ao escuro ao frio ao alto e ao silêncio. É por isso que abro janelas, que encho pela terceira vez o meu copo, que dou repetidas voltas na quadra às quatro da madrugada, que tiro cada um dos casacos para que meu corpo seja beijado pelos 3º C na sacada. Porque preciso transcender.