segunda-feira, 21 de junho de 2021

Desértica

15/06/2021 - 00h12

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Será que meu espírito me deixou? Sinto uma desconexão com o altíssimo, o lugar de inspiração. Surda para ouvir o sopro. A alma descolada do corpo, deformada, flutuando acima da cabeça, presa por farrapos ao meu cérebro. As memórias não são mais de fácil acesso: será que eu também vou me esquecer da infância? Dos abraços e beijos dos meus amores? Das risadas das pessoas? De emoções fortes? Coleções e coleções engavetadas, senhas de acesso perdidas, portas emperradas de mim. A substância de todas as escrituras, perdida. Caneta sem tinta. 

Como se perde memória e acervo de si, também se perde linguagem. Falei para meu amigo que penso em mim como vivendo uma grande aridez e secura, mas carregada de imenso respeito e amor pelo meu deserto, que é um tempo de espera, certa de que logo ali há vida, depois de atravessá-lo. Morta-viva, aguardo o verdejar de tudo em mim. Mas o amigo me corrige: "Pois eu me sinto vivo como nunca - e acho que você está bem viva também. Acho que pra se estar vivo sozinho, sem apoio, com dois pés na terra... Precisa-se estar muito vivo. Mais do que quando se tem 15 anos". 

E assim, hoje, me soube viva como nunca neste corpo cansado, nesta mente esquecida, cheia de palavras murchas sem nada a dizer. Assim mesmo, experiência válida. Estar viva e obter a consciência da preciosidade do hoje também como narrativa me caíram como grandiosas surpresas.

E, assim, eu que trabalho e espero por algo, eu que lavo meias em um balde, eu que tenho 27 anos e sou esquecida e já tenho rugas na testa e que amo e odeio em silêncio e que oculto percepções e que me faço de sonsa e que ensino crianças e que tenho dentes amarelos e que faço fofoca: sou eu narrativa válida.

E, também assim, me encerro como queria, mas diferente do que esperava: não me encerro para as palavras como imaginei que seria, mas encerro a minha expectativa pelo retorno de uma linguagem que na verdade já é velha e carcomida, não veste mais tão bem.

Nessa noite, estou enfim despida de mim como há anos não ficava. Havia desaprendido a necessidade de, de tempos em tempos, enterrar-se a si para parir qualquer coisa outra. 

Acreditei-me até então estar no deserto, como ouvi Adélia Prado descrevendo dia desses. Talvez estivesse mesmo, por ignorância. Hoje à noite, porém, lavo a boca seca neste oásis fresco de mim. Toda nua e refrescada quero dizer e registrar que também escreve-se sobre o deserto.

E que ele é lindo amarelo e quente. Queima os pés e os olhos. A pele endurece. O deserto ensina resignação. O deserto exige humildade e grande sacrifício. O deserto é uma missão. É preciso esquecer-se da sede, do cansaço, da dor, da secura inteira e acostumar-se ao infinito de areia. Seguir em frente e aceitar: "minha vida inteira será de caminhada em um deserto amarelo sem fim!". E é esquecendo-se do desejo de estar em verdejantes planícies férteis que, talvez, aprende-se a amar o deserto. A fazer parte do deserto. A reconhecer-se desértica-amarela. E enfim, cessada a relutância, aprender a linguagem dessa geografia.

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