segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Sentado numa sala cheia de fumaça

Folhas secas de velhas plantas no chão do teu quarto, hematomas na minha pele: não sei nem farei questão de saber quem você é. Aposto apenas na hipótese de péssima pessoa. Avisei logo a mim mesma e vi a luz do alerta piscando: "péssima pessoa!". Um pouco porque você não lava a louça, mas acima de tudo porque me lambe, porque me deixa roxa, porque me morde demais as coxas. A estranheza de te desconhecer e a liberdade de te ter como meu desconhecido me libera também da obrigação de te ler - então não te leio. Não há de se ler nada porque é assim que as coisas são. Não posso contemplar com olhos enfeitiçados coisa alguma. Há o céu, os prédios, a cidade inteira para ver do terraço, a tua sacada onde eu descanso e te espero desocupar o banheiro, perco um instante perseguindo os passarinhos noturnos, os carros lá embaixo, o trânsito de nuvens. Experimento não sentir nada. Não tenho medo. Não parece sonho. Estou aqui. Dura, compenso com honestas sujeiras e obscenidades toda uma vida adoecida por obsessivas fantasias. Você me oferece o colo onde me deito e onde apanho e de onde observo esse rosto bonito que mal beijo e que eu sei que saberia amar. Por ser pessoa crescida é que estou só, por isso não tenho medo, por isso não sinto amor - passo pelo mundo isenta de ingenuidade e vazia, obstinada a me deixar cortar. Não serei mais eu, serei esta outra. Passando sem drama e em silêncio, passando sem festa, passando sem euforia nem lágrima no olho: passando pelo mundo eu me deito com uma péssima pessoa e tento matar em mim a doçura. Até sei bem que a cor preta do teu olho é a minha favorita e que farejei a semelhança na composição da estranheza. Sei também que te escolhi na multidão com bons motivos: contigo eu ia gozar ouvindo jazz. Reflection on creation and space. Bruto, de dentes cerrados, olha furioso nos meus olhos enquanto expulsa a pureza do meu corpo, apertando meu pescoço. Assimilo e mereço cada um dos tapas na cara, a abolição definitiva da ingenuidade. Sábia e serena sei do meu destino: expulsa como puta barata junto meu casaco e saio com a carne que lateja tuas mordidas. Escoo todo o meu passado enquanto desço as escadas. Não me resta nada. Não sou nada. Aceito e te deixo não ser também.