sexta-feira, 28 de abril de 2017

A dor de Márcia

Há cinco anos Márcia se queixa de uma dor nas costas que nunca a deixa. Todos os familiares, cansados de saber, acostumaram-se a ignorar as reclamações e deixaram de se penalizar pela dor dela. Márcia entrava na casa da mãe (eram vizinhas, moravam lado-a-lado), dava bom dia já com as mãos nas costas, o rosto carrancudo, meio sem paciência para ninguém. A dor de Márcia estava presente em todas as refeições de domingo e até nas ceias de Natal, quase tinha uma cadeira só para si à mesa. A dor de Márcia era membro da família:
"Hoje a Dor nas Costas de Márcia passou dos limites!"
"Márcia hoje passou o dia em casa com a Dor nas Costas, não saiu para nada."
"Ela me disse que a Dor tem aparecido acompanhada de hemorroidas, às vezes".
A dor de Márcia era dor com maiúscula, tinha nome próprio, era assunto até das fofocas. Portanto, era quase que uma pessoa, de fato.
Um dia Márcia teve de ir, mesmo bastante dolorida, a uma das reuniões na escola da filha. Não havia ninguém que pudesse substituí-la naquele dia, então teve de encarar. Ao fim da reunião, em um círculo de mães que conversavam sobre coisas ordinárias, Márcia foi interrogada por uma delas:
"Como cê tá, Marcinha? Quase não te vejo na rua, muito menos aqui na escola. O que anda aprontando, mulher?" perguntou Letícia, com quem Márcia, coincidentemente, estudara junto no ensino fundamental, assim como suas filhas hoje eram colegas também. Márcia explicou que há algum tempo carrega essa dor nas costas - e ela explicava que parece meio nos rins, às vezes faz puxar a perna, outras vezes incomoda para sentar, atrapalha para dormir, em certos momentos é como um fincão, mas também pode parecer como um pedregulho entre duas vértebras. Todas ali presentes se compadeceram da história, algumas franzindo a testa, outras de boca aberta, enquanto ouviam os detalhes que Márcia contava sobre a dor com a qual convivia nos últimos anos. Entretanto, no exato momento em que as cinco mulheres estavam atentas em sua fala, demonstrando imensa solidariedade, Márcia percebeu que não tinha mais tanta certeza assim se sentia no corpo aquilo tudo que estava narrando. Enquanto Letícia comentava algum caso parecido de alguém que conhecia, Márcia ficou nervosa. Tentou perceber se estava sentindo alguma dor física naquele exato momento, mas não tinha certeza. Talvez apenas tivesse se acostumado com ela e, por isso, um grande nível de dor poderia começar a passar despercebido. Talvez fosse isso mesmo, pensou. Porém, em algum lugar, ela sabia: não sentia nada. Depois de todos os detalhes de sua narrativa, agora, com a consciência de seu corpo forte e equilibrado, sentiu-se sufocando. Havia forjado, por algum motivo desconhecido até mesmo para si mesma uma dor crônica que nunca a deixava, mas que sequer existia.

Reunião de orientação


Pedro, o menino

A mãe do menino, sentada à mesa com a moça gentil que os visitava, discutia algo importante, discursava como se fosse dona de todas as palavras bonitas e especiais que saíam dançando deliciosamente de sua boca e pairavam no ar. O menino conheceu, nas longas horas em que passava ouvindo a mãe conversando com sua orientanda, o sentimento de orgulho. Sentia admiração e prazer ao ouvir a mãe falar - ela era talentosa. Quanto à moça: sempre concentrada, silenciosa.  Por longos períodos, apenas ouvia a orientadora. 

...essa é uma obra em que eu consigo reconhecer o esforço humano empregado, o compromisso com a tentativa de fazer boa literatura. Veja bem, tentativa. Pois o que me incomoda é a sensação da falta uma essência, uma metafísica literária genuína neste texto. Apesar do autor estar obviamente munido de capacidade técnica, de referência, de inspiração... para mim, falta alma. Está mecânico. Esse tipo de texto, para ser honesto, precisa ter nascido da insanidade.

O silêncio pairou, sufocante. O medo que sentia ao ouvir a sua mãe, às vezes. Tudo se esvaiu. Pedro distraiu-se e não ouvia mais nada porque pensava nessa palavra..."munido". O menino, deitado no tapete da sala, comia devagar o chocolate que ganhara da moça gentil, a aprendiz de sua mãe. Munido. Pensava se podia dizer que munia um chocolate e estranhou essa palavra. Eu muno. "Eu muno um chocolate" era uma frase que não podia estar certo. Eu tô munindo um chocolate. Estou munido de um chocolate. Como quem porta (portar é ainda mais engraçado do que munir). Porte de armas. Rei Artur, munido de sua espada, entra em combates, portando coragem e determinação. Ou ao contrário? Portando a espada, munido de coragem. Isso. 

*

Mariana

A orientanda, gentil, adocicada pela humildade de aprendiz, atentava-se para saborear e digerir aprendizados. Sentia um êxtase específico - meio profano, meio transcedental - por ter acesso ao erotismo do mundo acadêmico. Erotismo para intelectuais e pretendentes ao saber formal, um universo de prazeres e delícias que poucos entendiam.
Naquele dia, enquanto ouvia e fazia esforço de assimilação, também divagava em devaneios literários durante a fala impetuosa da orientadora. Traçava, como um vício do qual jamais seria livre, os traços e delineados dessa personalidade a ser narrada - fazia de sua orientadora uma personagem de enredos que inventava ininterruptamente em sua mente.  Essa mulher, mãe, acadêmica, geniosa, confiante, firme, implacável, assustadora, monstruosa. Queria escrevê-la, transmutá-la em força da natureza, em animal mitológico, em um texto que se pega para ler e não se entende nada pois a linguagem é indecifrável. Sob o efeito do feitiço que a orientadora exercia, Mariana ouvia e se deliciava com cada gota de sabedoria que daquela mulher escorria e, ao mesmo tempo, ansiava por ter um papel em mãos e um momento solitário para poder escrevê-la. Não queria escrever sobre ela ou para ela. Mas a partir dela - da energia que dela emanava. 

*

Marta 

A mulher sabia daquela força natural e pulsante, do talento que a jovem orientanda carregava: como uma sina, uma bagagem pesada. Via Mariana forçando-se à academia - doutoramento em letras clássicas e vernáculas -, uma tentativa de adestramento de sua bruxaria natural. Como sua orientadora, Marta não poderia desencorajá-la da tese, mas sofria silenciosamente pela energia empregada e desperdiçada pela moça em academicismo. Mariana era uma literata nata, com a modéstia e a entrega sofredora dos que vivem em grandes narrativas intermináveis dentro de si, como uma loucura. Marta sabia, só de olhar para ela.
Pensar em Mariana fazia com que Marta pensasse em sua própria jornada: lembrava, até hoje, do exato momento, ainda em sua juventude, em que entendeu que o seu destino não era a literatura bruta, e sim a carreira literária acadêmica - mas jamais sentiu, por causa disso, arrebatamento ou frustração. Descobriu cedo que sua força estava em saber sentir, como leitora, escritora e acadêmica, a literatura na pele - dominava o difícil feitiço que transforma poesia em técnica. Desvendar, dissertar, comunicar, espalhar a inspiração, racionalizando-a, organizando-a em esquemas, em epistemologias, em conceitos, fazendo as devidas conexões e costuras entre os sentimentos, os sentidos, o campo das sensações com a qualificação técnica, crítica e reflexiva. Só era uma grande especialista justamente por ter a capacidade de passar todo o conhecimento formal pelo filtro secreto debaixo de todo o academicismo: o filtro da intuição. Marta tinha, obviamente, força criativa, autoral. Porém, a força de sua orientanda... era incendiária. Desgovernada. Não deveria ser submetida ao adestramento metodológico - era um desperdício de tempo, de iluminação, de potencial.
Então, discretamente, sem explicar o objetivo, estabelecia à Mariana: "Nesta semana, quero quinze páginas de tese, mas peço também que me tragas algumas páginas da tua escrita livre, autoral". Explicava que escrever por prazer dava suporte para que a criação formal acadêmica fosse menos penosa. Mariana, no começo, obedecia fielmente a margem mínima solicitada pela orientadora para a sua tese. Entretanto, em nenhum dos encontros trouxera maior número de páginas que o solicitado. Quanto ao seu caderno de escrita livre...cheio. Perturbador. Rabiscado, ilustrado, a escrita marcada pela desordenação, as rasuras que refletem a relação do autor consigo mesmo, com sua própria escrita - escreve, lê, desconsidera, nega, tenta novamente, recusa a si mesmo, se reinventa. Mariana era vítima de intuições malignas, carregava em si um demônio, um delírio que eventualmente a tomava e a obrigava a expulsar palavras cuspidas. Era consumida pelo incêndio. A orientadora também portava o mesmo delírio, por isso identificava-o em Mariana só de olhar em seus olhos, mas empregara o delírio na ordenação, no argumento, na costura técnica daquilo que às vezes nasce na bagunça.
Marta seguia alimentando sua aprendiz com ferramentas para exercer força crítica e argumentativa, rigor teórico, domínio de si, racionalização das emoções. Fazia o seu trabalho, exercia inspiração na base da rigidez. Não negaria o acesso da menina à academia. Mas ansiava pela bruxaria - a mágica misteriosa, secreta, escondida, censurada, sufocada, fruto das entranhas de Mariana, do fogo literário que queima por dentro e que destrói toda a ordem do mundo. Mariana nasceu para escrever - não teses, mas loucuras.

*



segunda-feira, 10 de abril de 2017

Intro

Os dias se arrastavam. A sua mãe cuidava da casa e todos os dias vinham sendo igualmente ensolarados, com a luz quente e amarela transpassando as claras cortinas, preenchendo a sala, esquentando o tapete felpudo. A menina passava algumas horas sentada ali, no macio, apoiando algum livro na mesa de centro, onde a preguiça a forçava a reclinar o corpo e dormir com o rosto colado no vidro da mesa. Ali, fazendo nada sem absolutamente nenhuma censura, observava a mãe andando de lá para cá, saindo e voltando com sacolas de compras. Ouvia o barulho e os cheiros das refeições sendo preparadas na cozinha. Achava aquela uma existência - a de sua mãe - especialmente silenciosa. A mãe era uma mulher que respeitava os silêncios, os espaços. Pedia licença. Jamais resmungava. A mulher era, de fato, pouco ruidosa, mesmo levando em conta os momentos em que passava o aspirador de pó pela casa ou quando andava por todos os cômodos enquanto tinha uma conversa animada no telefone. Eram ruídos que jamais incomodavam, invadiam ou distraíam a filha - o que, nesse caso, era um problema. A garota, que internamente estava vivendo uma obsessão, precisava urgentemente de uma distração, de um rompimento brusco imediato com a agitação mental a que estava submetida. Durante as primeiras semanas depois da perda que vivera, a menina achava que o sofrimento fazia parte de um processo natural, um luto emocional justo e que os estragos eram apenas reflexos da carência de dopamina: os sistemas de recompensa surtam quando a fonte de bem-estar seca. Racionalizando a situação, entendeu que, com a passagem da quantidade certa de dias, tudo voltaria ao normal. Porém, a obsessão parecia conduzi-la ao caminho contrário da cura. Piorava. Não sabia como preencher o vazio.

*

Vagando

Completava agora o primeiro mês desde as últimas palavras trocadas com o fugitivo e as coisas ainda não haviam silenciado ou minimamente acalmado: a inconformação crescia, crescia e engolia dias inteiros. O fugitivo era um homem comum. Invisível. Estava apenas passando - uma existência sempre passageira, de tíquetes comprados, longas viagens. Fugaz, sim; mas não por crime - apenas não podia deixar que raízes crescessem em lugar algum. 
O homem carregava no semblante um enigma - o enigma de si mesmo - tão impregnado e profundo como uma cicatriz horrenda. Quem o olhasse, mesmo simplesmente andando na rua, como um homem qualquer, podia sentir o incômodo. O fugitivo, embora ainda mais silencioso que a mãe da menina, causava estrondosos desconfortos sem precisar sequer abrir a boca ou olhar nos olhos das pessoas. Era algo sobre a sua presença. Andava pelo mundo como se portasse em si todos os segredos da existência - uma audácia, um mistério e uma melancolia de quem parece ter descoberto a verdade universal e tivesse de carregar sozinho o peso do mundo sem poder contar o segredo para ninguém. 
Essas eram apenas observações da menina, devaneios, tentativas romantizadas de defini-lo, de entendê-lo, de interpretá-lo. Decifrá-lo. Talvez o homem não portasse sabedoria nenhuma e coisa alguma soubesse. Porém, a única certeza é de que o que nele havia de soturno, encaixava com o que nela era melancolia. E, no fim, seria um crime insinuar, aqui, que fosse esse um caso de amor - não era. Era coisa estranha, dolorida como nascer, estranhamente prazerosa: era o reconhecimento de si mesmo no outro e sobre o potencial incendiário do encontro. Era sobre reconhecer-se no outro e sentir no corpo, bem na altura do estômago, o enjoo, o estranhamento, o medo de ver-se com clareza em outra pessoa. Trocar de pele. Ser a si e ser o outro. As entranhas revirando-se agitadas porque encontraram algo de sua própria constituição, mas em outro corpo. Cada célula transmitindo o sinal, a corrente elétrica através dos neurônios, o estrondoso toque das mãos. Era tudo muito estranho. Reconheceram-se como semelhantes antes mesmo da troca de qualquer palavra.


*

"Preciso ir, tudo bem?", ele disse, um dia, levantando-se do gramado aonde descansavam, deitados. Tá bem, ela respondeu, sentando-se mas sem sair do lugar, com a voz sôfrega para sair, presa na garganta. O homem, já de pé, concordou com a cabeça como um gesto de despedida e deu as costas. Foi embora, com as mãos nos bolsos do casaco. Ela permaneceu ali, observou o homem que se afastava. Tudo era sempre tão grave, tão absurdo naqueles encontros. Lamentou, pela primeira vez, não ter podido oferecer um abraço. Sentiu no corpo uma vontade de sorrir e de fazer sorrir, a ambição mais humana, mundana e simples de felicidade. O corpo tremeu de um medo súbito, o medo da impotência. As mãos geladas, tão disponíveis e entregues, porém amarradas por nós invisíveis. Péssimas intuições. Nada mais poderia ser feito, ou dito. O homem dobrou uma esquina, sumiu de vista. Foi a última vez que se viram - e ela soube, mesmo sem ter sido avisada, que nunca mais se encontrariam.


*

Mais de uma vez, chamaram-lhe de louca. Não dava ouvidos. Sabia que estava transcendendo. Mesmo deitada, dias a fio. Mesmo chorando. Mesmo doente. Mesmo dormindo. Sentia, nas profundezas de si, que ainda restavam forças. Que estava parindo sabedoria. Que se curaria da perda de seu pedaço mais ingrato, traiçoeiro. Era sábado de primavera, a casa banhada pela luz quente do sol. Não era um de seus dias difíceis. Tudo começava a acalmar. Perdera um parceiro - o fugitivo, o passageiro, o fugaz. Talvez jamais tivesse o possuído, mas perdê-lo de vista depois de conhecê-lo era como perder o acesso a uma parte de si mesma que, antes dele, era desconhecida. Como perder a chave de um baú secreto, que fica escondido em casa, guardando um segredo muito importante. Naquele dia, por milagre, dentro e fora de si tudo estava quieto. A noite caiu, silenciosa. Não fazia mais tanto frio. Sentia-se fortalecida. Não foi preciso acender a lareira. Colocou seu colchão no chão da sala, assistiu um filme com sua mãe, que depois voltou para seu quarto. A menina ficou ali, no seu colchão. Desligou a televisão.
Deitada, no escuro, mexia os dedos dos pés e sentia o roçar do tecido das meias quentinhas na sua pele. Insone, em vigília misteriosa, o corpo vagava suave em um perene mar imaginário. Movia os pés na cama como se fossem nadadeiras, lentamente, ao aguardo do adormecer. O corpo cansado, leve e entregue... como na infância, nos quentes dias de verão na praia, em que depois de horas de banho de mar, o ritual de pegar no sono acontecia no ritmo das ondas. Não havia ido à praia naquele dia - mas havia uma espécie de maresia que a embalava. Sentia-se uma tartaruga.
Com delicadeza, a mão abria e fechava e sentia a pele entre os dedos esticar, membranas e cartilagens parecidas com as dos animais marinhos, das aves, dos esquilos-voadores. Era um pouco de cada um deles. Contemplou a unidade maior - todas essas vidas em si, refletidas no abrir e fechar de sua mão. Encostando a ponta de um dedo no outro, testou a textura de cada um deles. O desafio de sentir a própria pele e da própria pele sentir o próprio toque. Depois, roçou devagar as pontas dos dedos no travesseiro. Achou engraçada a súbita consciência do tato. Aproveitou a sensibilidade aguçada nas mãos e lembrou de várias outras mãos que já haviam tocado as suas, centenas de texturas e sensações. Houve uma mão - a do homem. O homem que desejava mas que jamais lhe pertenceria. Fez a força necessária para emular a lembrança nas mãos, na ponta dos dedos: Primeiro, a barba - e a mão, no escuro, imitou a forma como costumava deslizar no rosto dele, descendo pelo maxilar e terminando a trajetória no queixo, com a barba macia entre os seus dedos. Depois, na palma das mãos, sentiu o calor da lembrança dos cabelos. A recordação que voltava viva, guardada nos poros, nos tecidos, no sistema nervoso. E a mão também recordou-se da nuca, por onde deslizava de baixo para cima, subindo dos ombros pelo pescoço, as unhas arranhando o couro cabeludo, os maços de cabelos por entre os dedos. O dedo indicador e anelar, também donos de lembranças, repetiam o movimento de caminhar, um na frente do outro, um passo de cada vez, pequeninos passinhos para dentro do punho da camisa do homem - lembra que foi assim que conheceu seus pulsos. Por fim, a mão se fecha ao redor da lembrança do joelho masculino invisível - a lembrança tátil e sensorial do toque, do formato, do susto de encostar em um outro corpo com súbita intimidade. Deixou, enfim, a sensação se esvaziar. Diluir no ar. Deixou-se esquecer. Precisava se desfazer dessa presença atormentadora e dolorida e voltar para a simples sensação de mar.  Deitada na cama, tranquila, suave, em paz, batia os pés e nadava para longe da dor terrena que a fazia sentir ridícula e pequena. Mergulhou fundo, na imensidão de azul, para o silêncio pacífico das profundezas. Adormeceu.

*


Acordou. Soube, de imediato, e muito pacificamente, que a vida era, de fato, ordinária. A mágica, as luzes, a levitação - todas coisas da mente. Eram os seus filtros, suas lentes, suas músicas, suas cores. Era própria da menina, também, a gentileza de pincelar tudo no homem com aquarela.
No fim, talvez fosse só um homem bastante simples.
Um homem qualquer.
Que não guardava chave nenhuma.
Talvez ela nem mesmo precisasse mergulhar tão fundo com ninguém coisíssima nenhuma, mas o fato de haver mergulhado lhe causara o acidental e abrupto encantamento perante o inesperado, o desconhecido, a profundeza - de forma que, agora, a vida na superfície parecesse insuportável, estéril de magia e de propósito.
Pensava agora que longe do turbilhão igualmente sombrio e luminoso daqueles encontros, talvez o homem pudesse exercer o direito de ser apenas ordinário. Quem sabe se, em uma paisagem mais primaveril do que aquelas ruas cinzentas, o homem pudesse também deixar-se aliviar. Torcia para que ele alcançasse um ponto em que ser soturno já tivesse esgotado todas as suas energias. Imaginava para ele um destino simples como o que agora desejava para si mesma. Sem o incêndio. Sem a névoa. Sem tanta elevação. Sem mistérios. Esperava que ele próprio, sozinho, se descobrisse um homem bastante simples. Porque ela sabia que também era, ela própria, uma pessoa comum. Gostava de abraços e carinhos. Gostava de gente, de purê de abóbora e de dançar. Queria ter um bicho, a mãe não permitia - um dilema juvenil universal, sem nada de especial. Colecionava selos. Ia para a escola, gostava de geografia. As coisas mais normais. Era também bastante ordinária, como todos. Mas, juntos, ela e ele...sentia como se juntos fossem além, atingindo um outro plano existencial, uma outra linguagem muito própria. Preenchiam buracos. Com falas compridas, de olhos fechados, quase sentindo o cheiro do vento. Ouvindo o mundo. Olhando para cima. Dormindo no chão. Janela aberta, música ruim, café nas canecas. Uma mão repousando no joelho dele. Sabia que era seu lugar no mundo, sem nenhuma dúvida. Sabia que estava em casa - uma casa que até então desconhecia, mas sempre esteve lá, na floresta do mundo, nas brumas da existência, com cheiro de madeira e lareira acesa. Como se entendesse o sentimento de lar só quando adentrou aqueles cômodos aquecidos de si mesma que encontrara dentro da mente de outra pessoa. Abriam juntos gavetas misteriosas, apalpavam com mãos carinhosas o inconsciente, sorrindo de olhos fechados, confortáveis em silêncios prolongados, adormecendo na poltrona - sem tempo, sem respostas, sem futuro, sem amanhã, sem destino, sem planos, sem palavras. 
Mas há o recuo.
E, com o tempo, a vontade de pertencer às coisas amenas,
Pertencer ao sol, pertencer às palavras fáceis,
Pertencer ao mundo que se conhece,
Pertencer à superfície,
Então, pertence-se.

(...)



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