Completava agora o primeiro mês desde as últimas palavras trocadas com o fugitivo e as coisas ainda não haviam silenciado ou minimamente acalmado: a inconformação crescia, crescia e engolia dias inteiros. O fugitivo era um homem comum. Invisível. Estava apenas passando - uma existência sempre passageira, de tíquetes comprados, longas viagens. Fugaz, sim; mas não por crime - apenas não podia deixar que raízes crescessem em lugar algum.
O homem carregava no semblante um enigma - o enigma de si mesmo - tão impregnado e profundo como uma cicatriz horrenda. Quem o olhasse, mesmo simplesmente andando na rua, como um homem qualquer, podia sentir o incômodo. O fugitivo, embora ainda mais silencioso que a mãe da menina, causava estrondosos desconfortos sem precisar sequer abrir a boca ou olhar nos olhos das pessoas. Era algo sobre a sua presença. Andava pelo mundo como se portasse em si todos os segredos da existência - uma audácia, um mistério e uma melancolia de quem parece ter descoberto a verdade universal e tivesse de carregar sozinho o peso do mundo sem poder contar o segredo para ninguém.
Essas eram apenas observações da menina, devaneios, tentativas romantizadas de defini-lo, de entendê-lo, de interpretá-lo. Decifrá-lo. Talvez o homem não portasse sabedoria nenhuma e coisa alguma soubesse. Porém, a única certeza é de que o que nele havia de soturno, encaixava com o que nela era melancolia. E, no fim, seria um crime insinuar, aqui, que fosse esse um caso de amor - não era. Era coisa estranha, dolorida como nascer, estranhamente prazerosa: era o reconhecimento de si mesmo no outro e sobre o potencial incendiário do encontro. Era sobre reconhecer-se no outro e sentir no corpo, bem na altura do estômago, o enjoo, o estranhamento, o medo de ver-se com clareza em outra pessoa. Trocar de pele. Ser a si e ser o outro. As entranhas revirando-se agitadas porque encontraram algo de sua própria constituição, mas em outro corpo. Cada célula transmitindo o sinal, a corrente elétrica através dos neurônios, o estrondoso toque das mãos. Era tudo muito estranho. Reconheceram-se como semelhantes antes mesmo da troca de qualquer palavra.
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"Preciso ir, tudo bem?", ele disse, um dia, levantando-se do gramado aonde descansavam, deitados. Tá bem, ela respondeu, sentando-se mas sem sair do lugar, com a voz sôfrega para sair, presa na garganta. O homem, já de pé, concordou com a cabeça como um gesto de despedida e deu as costas. Foi embora, com as mãos nos bolsos do casaco. Ela permaneceu ali, observou o homem que se afastava. Tudo era sempre tão grave, tão absurdo naqueles encontros. Lamentou, pela primeira vez, não ter podido oferecer um abraço. Sentiu no corpo uma vontade de sorrir e de fazer sorrir, a ambição mais humana, mundana e simples de felicidade. O corpo tremeu de um medo súbito, o medo da impotência. As mãos geladas, tão disponíveis e entregues, porém amarradas por nós invisíveis. Péssimas intuições. Nada mais poderia ser feito, ou dito. O homem dobrou uma esquina, sumiu de vista. Foi a última vez que se viram - e ela soube, mesmo sem ter sido avisada, que nunca mais se encontrariam.
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Mais de uma vez, chamaram-lhe de louca. Não dava ouvidos. Sabia que estava transcendendo. Mesmo deitada, dias a fio. Mesmo chorando. Mesmo doente. Mesmo dormindo. Sentia, nas profundezas de si, que ainda restavam forças. Que estava parindo sabedoria. Que se curaria da perda de seu pedaço mais ingrato, traiçoeiro. Era sábado de primavera, a casa banhada pela luz quente do sol. Não era um de seus dias difíceis. Tudo começava a acalmar. Perdera um parceiro - o fugitivo, o passageiro, o fugaz. Talvez jamais tivesse o possuído, mas perdê-lo de vista depois de conhecê-lo era como perder o acesso a uma parte de si mesma que, antes dele, era desconhecida. Como perder a chave de um baú secreto, que fica escondido em casa, guardando um segredo muito importante. Naquele dia, por milagre, dentro e fora de si tudo estava quieto. A noite caiu, silenciosa. Não fazia mais tanto frio. Sentia-se fortalecida. Não foi preciso acender a lareira. Colocou seu colchão no chão da sala, assistiu um filme com sua mãe, que depois voltou para seu quarto. A menina ficou ali, no seu colchão. Desligou a televisão.
Deitada, no escuro, mexia os dedos dos pés e sentia o roçar do tecido das meias quentinhas na sua pele. Insone, em vigília misteriosa, o corpo vagava suave em um perene mar imaginário. Movia os pés na cama como se fossem nadadeiras, lentamente, ao aguardo do adormecer. O corpo cansado, leve e entregue... como na infância, nos quentes dias de verão na praia, em que depois de horas de banho de mar, o ritual de pegar no sono acontecia no ritmo das ondas. Não havia ido à praia naquele dia - mas havia uma espécie de maresia que a embalava. Sentia-se uma tartaruga.
Com delicadeza, a mão abria e fechava e sentia a pele entre os dedos esticar, membranas e cartilagens parecidas com as dos animais marinhos, das aves, dos esquilos-voadores. Era um pouco de cada um deles. Contemplou a unidade maior - todas essas vidas em si, refletidas no abrir e fechar de sua mão. Encostando a ponta de um dedo no outro, testou a textura de cada um deles. O desafio de sentir a própria pele e da própria pele sentir o próprio toque. Depois, roçou devagar as pontas dos dedos no travesseiro. Achou engraçada a súbita consciência do tato. Aproveitou a sensibilidade aguçada nas mãos e lembrou de várias outras mãos que já haviam tocado as suas, centenas de texturas e sensações. Houve uma mão - a do homem. O homem que desejava mas que jamais lhe pertenceria. Fez a força necessária para emular a lembrança nas mãos, na ponta dos dedos: Primeiro, a barba - e a mão, no escuro, imitou a forma como costumava deslizar no rosto dele, descendo pelo maxilar e terminando a trajetória no queixo, com a barba macia entre os seus dedos. Depois, na palma das mãos, sentiu o calor da lembrança dos cabelos. A recordação que voltava viva, guardada nos poros, nos tecidos, no sistema nervoso. E a mão também recordou-se da nuca, por onde deslizava de baixo para cima, subindo dos ombros pelo pescoço, as unhas arranhando o couro cabeludo, os maços de cabelos por entre os dedos. O dedo indicador e anelar, também donos de lembranças, repetiam o movimento de caminhar, um na frente do outro, um passo de cada vez, pequeninos passinhos para dentro do punho da camisa do homem - lembra que foi assim que conheceu seus pulsos. Por fim, a mão se fecha ao redor da lembrança do joelho masculino invisível - a lembrança tátil e sensorial do toque, do formato, do susto de encostar em um outro corpo com súbita intimidade. Deixou, enfim, a sensação se esvaziar. Diluir no ar. Deixou-se esquecer. Precisava se desfazer dessa presença atormentadora e dolorida e voltar para a simples sensação de mar. Deitada na cama, tranquila, suave, em paz, batia os pés e nadava para longe da dor terrena que a fazia sentir ridícula e pequena. Mergulhou fundo, na imensidão de azul, para o silêncio pacífico das profundezas. Adormeceu.
*
Acordou. Soube, de imediato, e muito pacificamente, que a vida era, de fato, ordinária. A mágica, as luzes, a levitação - todas coisas da mente. Eram os seus filtros, suas lentes, suas músicas, suas cores. Era própria da menina, também, a gentileza de pincelar tudo no homem com aquarela.
No fim, talvez fosse só um homem bastante simples.
Um homem qualquer.
Que não guardava chave nenhuma.
Talvez ela nem mesmo precisasse mergulhar tão fundo com ninguém coisíssima nenhuma, mas o fato de haver mergulhado lhe causara o acidental e abrupto encantamento perante o inesperado, o desconhecido, a profundeza - de forma que, agora, a vida na superfície parecesse insuportável, estéril de magia e de propósito.
Pensava agora que longe do turbilhão igualmente sombrio e luminoso daqueles encontros, talvez o homem pudesse exercer o direito de ser apenas ordinário. Quem sabe se, em uma paisagem mais primaveril do que aquelas ruas cinzentas, o homem pudesse também deixar-se aliviar. Torcia para que ele alcançasse um ponto em que ser soturno já tivesse esgotado todas as suas energias. Imaginava para ele um destino simples como o que agora desejava para si mesma. Sem o incêndio. Sem a névoa. Sem tanta elevação. Sem mistérios. Esperava que ele próprio, sozinho, se descobrisse um homem bastante simples. Porque ela sabia que também era, ela própria, uma pessoa comum. Gostava de abraços e carinhos. Gostava de gente, de purê de abóbora e de dançar. Queria ter um bicho, a mãe não permitia - um dilema juvenil universal, sem nada de especial. Colecionava selos. Ia para a escola, gostava de geografia. As coisas mais normais. Era também bastante ordinária, como todos. Mas, juntos, ela e ele...sentia como se juntos fossem além, atingindo um outro plano existencial, uma outra linguagem muito própria. Preenchiam buracos. Com falas compridas, de olhos fechados, quase sentindo o cheiro do vento. Ouvindo o mundo. Olhando para cima. Dormindo no chão. Janela aberta, música ruim, café nas canecas. Uma mão repousando no joelho dele. Sabia que era seu lugar no mundo, sem nenhuma dúvida. Sabia que estava em casa - uma casa que até então desconhecia, mas sempre esteve lá, na floresta do mundo, nas brumas da existência, com cheiro de madeira e lareira acesa. Como se entendesse o sentimento de lar só quando adentrou aqueles cômodos aquecidos de si mesma que encontrara dentro da mente de outra pessoa. Abriam juntos gavetas misteriosas, apalpavam com mãos carinhosas o inconsciente, sorrindo de olhos fechados, confortáveis em silêncios prolongados, adormecendo na poltrona - sem tempo, sem respostas, sem futuro, sem amanhã, sem destino, sem planos, sem palavras.
Mas há o recuo.
E, com o tempo, a vontade de pertencer às coisas amenas,
Pertencer ao sol, pertencer às palavras fáceis,
Pertencer ao mundo que se conhece,
Pertencer à superfície,
Então, pertence-se.
(...)
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