terça-feira, 27 de março de 2018

- Hoje eu tô só pela novela, dona Teresa - disse o motorista do ônibus para a passageira que subia os degraus do veículo.
- Eu também, tô até ansiosa - respondeu a mulher, fazendo uma careta boba, arqueando as sobrancelhas enquanto se acomodava em um banco logo atrás da cadeira do motorista.
- Ver novela, nada. Credo! - intrometeu-se o cobrador, gritando alto lá do seu assento - Vai fazer uma capina, Zé! 
- Quê isso, maninho. Aí é judiaria demais. Eu morro e não levo nada pra cova. 
O cobrador não respondeu, foi pego de surpresa. Soube de imediato, sem nem precisar pensar, que o colega tinha uma certa razão. Entendeu de uma vez só, como se fosse um soco, que os prazeres simples tinham valor - ver novela talvez fosse um deles. Mas era implicante, não podia sair por baixo, então tentou argumentar:
- Tá certo, mas essas novelas são de matar, viu...É cada coisa...não dá, não.
- Pois é... mas a gente gosta. - riu a mulher, sem se sentir nem um pouco ofendida.
O cobrador não falou mais nada.
- Mas que loucura, né, Zé?!?! - prosseguiu a mulher - Tu viu ontem, aquela ordinária da Fernanda?
- Pois eu vi!!!! - respondeu o motorista, empolgado. - Rapazzzz, mas que mulherzinha desgraçada, viu?!
- É demais, mas tem muita gente igual aí fora e a gente nem sabe.
- Mas com certeza, dona Teresa! Até pior!
O cobrador não se intrometeu mais, não tinha argumentos: até porque ele mesmo odiava capinar. 

Frases dos outros - 2

Por algum motivo muito estranho, uma vez me disseram: "você só me odeia tanto porque direciona a mim todo o ódio que sente por si mesma". Lembro do quanto ri, achei ridícula a falsa sabedoria, até porque eu não odiava coisa nenhuma, muito menos a mim mesma. Me parece ainda uma grande maluquice quando penso sobre. Entretanto, a frase misteriosamente tem passado pela minha mente nos últimos dias, como se eu precisasse averiguar de novo, me certificar de que ela continua não fazendo sentido. E aí que ela fica retumbando na minha cabeça, ecoando..."(...) o ódio que tu sente por si mesma". Reavalio, mas, não... continua mesmo sem pé nem cabeça. E eu a nego todas as vezes, de novo e de novo. "Não, não me odeio", decido mais uma vez. "Não, não, não. Realmente, nada a ver" e me divirto de novo e de novo e de novo ao pensar sobre isso, diagnosticando a maluquice alheia, sempre embasbacada com o absurdo de ter ouvido isso de alguém, refletindo sobre esse tom besta de autoridade que as pessoas tomam às vezes para dizer coisas péssimas aos outros. Mas assumo que, lá no fundo, bem secretamente, quase que me censurando, eu me pergunto todas as vezes: "mas será que eu me odeio?". E de novo, teimosa, me respondo firmemente que não, impossível. "Eu não me odeio. As pessoas é que são malucas e que me perturbam a sanidade. Eu, na verdade, sou simples.". E repito "sou simples" um milhão de vezes se for preciso, até virar um mantra. Porque eu juro, mesmo, que eu sou simples - só preciso me convencer.


Frases dos outros - 1

"As minhocas têm cérebro?", meu amigo me perguntou. Não respondi, mas me conectei com a divagação. E, tão logo ele terminou de narrar o seu fluxo de pensamento, eu adormeci. Não por tédio ou desinteresse, mas porque havia realmente me conectado à pergunta. E, pensando, ouvindo... apaguei - como que ansiosa para botar em funcionamento outro maquinário mental, as engrenagens dos sonhos e da serena insanidade do inconsciente. Suavemente, apaguei. Lembro de ter sonhado que ratazanas tentavam invadir o meu quarto e eu fechava a porta violentamente, esmagando algumas no processo. Me acordei para mudar de posição na cama, não consegui abrir os olhos completamente, mas vi o escuro do quarto - tudo retorcido, embaçado, confuso. A delícia da falta de clareza mental, do delicado enjoo de desorientação. Dormi de novo.