segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Como gata,
me mantenho hermética
enquanto lambo minhas feridas
abertas de briga

A língua,
potência curativa,
inteira devotada à minha carne
sofrida

Deitada aos teus pés
inerte de tudo
- o tempo,
a história,
o pensar,
o sentir,
o todo  - 
me reafirmo gata

Roçando a cauda em teus tornozelos
Desconfiada
não sinto:
toco

Teus pés fatigados
Onde me estiro por simpatia
Enquanto anos e anos 
e anos e anos
visitam teus olhos
Fechados.

Não te conheço,
a não ser pelas beiradas,
bordas,
orlas,
extremos.

Beijo os pequeninos ossos
e teu couro cansado
a vida inteira apertados
nas vestes e calçados 
de existir

Enquanto tu sabes -
sentes, pensas, decretas - 
para si 
e para o mundo
que és merecedor
de tudo, de tanto!

Inclusive de
ter os pés beijados: 
também pelo poder,
também pela obscenidade,
também pelo símbolo e pela graça,

Mas antes de tudo,
e um pouco que secretamente,
porque precisa ser tocado

Nos calcanhares assim como nas dores,
Acordado da apatia
com calor de língua,
arrepio na espinha

Mares quentes
Pele que descasca
Queimada
Olho para ti 
Com olho vidrado
de gata

E te vejo inteiro verão
Todo flor e fruta
Solar
Fazendo arder inteira 
Minha Natureza noturna

Esquiva e assustada
Diante de ti 
Magnético monstro
Mimoso
Sou simples felina

Que se estira, estica, espicha
Aconchega 
Encara
E fareja

Alguma verdade instintiva
No teu semblante
Silencioso, esvaziado
Distante, perdido

Enquanto sou toda
Corpo e faro
Sedenta por sentido
Movida à percepção 

Te escuto anunciar
"Quero ser rei!"
e vigio tua disposição
de menino

Enquanto cumpro meu caminho
Selvático,
Caótico,
Sina de bicho

E se me perguntas,
eu digo:
"sim, 
te vejo rei!"

Homem-monstro, sorrindo 
Com a boca cheia de dentes
De ouro

Os braços abertos apontando
Orgulhoso
Para a imensidão do teu legado

Um horizonte inteiro,
Um palácio,
Uma selva,
Um santuário

felino.



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