15/06/2021 - 00h12
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Será que meu espírito me deixou? Sinto uma desconexão com o altíssimo, o lugar de inspiração. Surda para ouvir o sopro. A alma descolada do corpo, deformada, flutuando acima da cabeça, presa por farrapos ao meu cérebro. As memórias não são mais de fácil acesso: será que eu também vou me esquecer da infância? Dos abraços e beijos dos meus amores? Das risadas das pessoas? De emoções fortes? Coleções e coleções engavetadas, senhas de acesso perdidas, portas emperradas de mim. A substância de todas as escrituras, perdida. Caneta sem tinta.
Como se perde memória e acervo de si, também se perde linguagem. Falei para meu amigo que penso em mim como vivendo uma grande aridez e secura, mas carregada de imenso respeito e amor pelo meu deserto, que é um tempo de espera, certa de que logo ali há vida, depois de atravessá-lo. Morta-viva, aguardo o verdejar de tudo em mim. Mas o amigo me corrige: "Pois eu me sinto vivo como nunca - e acho que você está bem viva também. Acho que pra se estar vivo sozinho, sem apoio, com dois pés na terra... Precisa-se estar muito vivo. Mais do que quando se tem 15 anos".
E assim, hoje, me soube viva como nunca neste corpo cansado, nesta mente esquecida, cheia de palavras murchas sem nada a dizer. Assim mesmo, experiência válida. Estar viva e obter a consciência da preciosidade do hoje também como narrativa me caíram como grandiosas surpresas.
E, assim, eu que trabalho e espero por algo, eu que lavo meias em um balde, eu que tenho 27 anos e sou esquecida e já tenho rugas na testa e que amo e odeio em silêncio e que oculto percepções e que me faço de sonsa e que ensino crianças e que tenho dentes amarelos e que faço fofoca: sou eu narrativa válida.
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