Outra lembrança é de estar no centro espírita, em uma sala onde era a biblioteca, ao lado de onde acontecia a sessão. Era o centro kardecista onde cresci. Carmen, a prima da minha mãe, também frequentava. Lembro de, da sala ao lado, ouvir a entidade - Iara, que incorporava a dirigente da casa, dona Celci - confrontar Carmen por conta das unhas: compridas e pintadas de roxo, "parecem garras", que ela deveria cortar fora, pois simbolizavam todas as unhas que ela inescrupulosamente havia arrancado de pessoas em uma vida anterior. Por algum motivo, existia uma hostilidade da entidade - ou simplesmente de dona Celci - para com Carmen.
A lembrança mais vívida, e da qual gosto muito, é de Carmen sentada na cozinha do apartamento enquanto minha mãe - mãe de dois - cozinhava o almoço para nós e para a visita. Percebo que minha mãe talvez nunca tenha tido a oportunidade de ocupar aquele feminino: estar sentada à mesa, comendo uma maça enquanto espera alguém preparar o almoço, fumando um cigarrinho, divagando. E aquele feminino na minha casa - um feminino de cabelo curto, unhas pintadas, fumante, divagante - tinha um cheiro especial. Me apresentava algo novo. Exercia, sem que eu percebesse à época, certo magnetismo.
Uma das últimas lembranças é de visitar Carmen numa casinha no Barro Duro. Fomos de ônibus, eu, meus pais e meu irmão. A casa tinha um pátio com grama onde montamos uma piscina de mil litros. E a casa também tinha objetos interessantes. Um deles era o jardim chinês, aquele enfeite com uma areia e umas pazinhas pra ficar mexendo, acredito que para relaxar. Nunca tinha visto um, me prendeu. No pátio, tinha um construção, um quartinho, onde ela guardava quinquilharias compradas no Paraguay - talvez para revender, mas que tinha desistido, e que ficaram lá paradas. Enfeites de Natal, material escolar, brinquedos, porcarias em geral. Eu, que nasci com uma apurada natureza de rata mexeriquenta, me diverti entre as caixas.
O ponto é que: penso muito em Carmen, que faleceu doente do corpo e da mente, deformada de si. Sinto falta daquela figura que me apresentou alguma coisa que não entendo bem. Quando penso em bruxaria, penso nela. E na presença misteriosa que me causava tanta curiosidade.
Cresci em ambientes místicos, de luzes coloridas, passes, reforço com guaraná na cabeça no final do ano no centro espírita, sons da natureza, deitada no chão embaixo da maca enquanto minha mãe aplicava massagem relaxante em alguém. Carmen fazia parte desse universo de encantamentos e de mistérios.
Hoje, aos vinte e oito anos, talvez perceba que Carmen tenha sido também um desses femininos agredidos e atacados, que sofreu abusos e traumas, que foi incompreendida pela família, que foi viúva na juventude. Professora, como eu.
Carmen, de quem lembro quando acendo um incenso ou fumo um cigarro ou percebo que minha cor favorita é roxo.
Carmen, teu nome para caso eu tenha uma filha.
Onde quer que estejas, receba meu carinho e saudades.
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